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sábado, 17 de janeiro de 2015

Eu dancei com todas as minhas mães

Era uma longa sala, vasta sala de estar e dançar. Piso de madeira lustrado, mas que não me fazia escorregar, mesmo com os sapatos. Eu me lembro. Eu era adulto como agora, mas meu coração não estava assim tão cansado como agora está. Minha barba estava no ponto, os olhos estavam sorrindo para que a boca pudesse apenas ficar tranquila e no lugar. Minhas mãos eram firmes e cheiravam a creme de baunilha. Eu usava uma roupa para festa e elas usavam a mesma roupa, cada uma com uma idade específica.

Eu me aproximei da minha última mãe e o braço dela, esperto apesar de velho, veio até mim e me abraçou. Segurei uma de suas mãos. A mão esquerda da minha mãe mais velha. Ela estava no centro da sala e eu ali, filho crescido e organizado, para dançar com ela. E então a gente dançou. Eu não esperava, mas a gente dançou. E eu sabia dançar. Meus passos a guiavam e ao redor de nós, espalhados em meio às poltronas e aos compridos sofás, creio que outros da família nos viam brincar. 

Não me lembro da música. Mas tão somente do vento no rosto. Lembro-me que num momento eu fechei os olhos e ela encostou a velha face no meu peito. E assim bailamos, juntos e destemidos. A minha mãe mais velha e eu ainda como hoje, um pequeno velho homem menino. Dançamos pela extensão da sala, de um lado ao outro, com extrema leveza e precisão. Lembro-me do seu rosto encostado em meu peito e de sua expressão. E então chegou a dança ao fim. Eu parei, os braços se soltaram de mim. Ela era mais magra, tal como fora um pouco antes de eu nascer. Só que ali, naquele salão, a minha mãe mais velha era mais velha do que o tempo podia prever.

Olhei sua face. Ela sorria. Não havia choro. Eu estranhei. Ela sorria apenas, sem medo da revelação que a vida inteira ela escondera de mim: a de que sim, era possível ser feliz sem chorar. E então, por estranhar, eu olhei ao redor. E foi quando vi minhas outras mães. Paradas cada uma num canto da sala. A conversa dos outros parentes silenciou. Elas me olharam, todas as minhas mães. Elas me olharam com olhar nítido de cuidado e adoração. Queriam dançar comigo, queriam me tirar para dançar. E eu pensando: se a minha mãe mais velha dançou assim, tão veloz, o que as mães mais jovens farão de mim?

Vi a mais nova, a mais magra e com cara de fraca. A mãe que ainda não sabia que seria mãe (mas que só desejava). Talvez porque não imaginasse que teria tantos filhos, eu e meus irmãos. Vi, com a mesma roupa (apesar de outro tempo), a mãe que primeiro foi mãe. A mãe com a barriga costurada, o ventre semi-aberto, as pernas e costas já doloridas de tanto colocar e tirar filho do banho. Ela me sorria, marejada. Vi outra mais, outra mãe minha. Assustada, mas ainda assim sorrindo. Vi minha mãe depois que nós filhos já tínhamos crescido. Vi ela com peso e gravidade a tragando para o centro da terra. Um sorriso presente, mas consternado. Ela me mirava enquanto eu pensava (essa mãe sabe de mim por inteiro). E vi outras mães minhas. E todas me acenavam sem acenar. Era só eu esticar as mãos e as tirar para bailar. E assim foi. E nisso fiquei a noite inteira. Dançando com todas as minhas mães que sequer eu imaginava que sabiam ou que gostavam de dançar. E a cada dança, um novo abraço, um novo tocar de mãos.

Hoje se me lembro do que fica, além da dança e do vento no rosto, além dos abraços e beijos no rosto, hoje, além do mimo de suas roupas, do cheiro de laquê e da maquiagem pura e delicada, hoje o que me fica é a mão mais velha da mãe mais envelhecida. Hoje eu dancei com todas as minhas mães e, pasmem, a mais velha de todas eu não conheci ainda. Mas, em meu sonho, eu tive o prazer não só de conhecê-la, mas também de dançar com ela. Abro os olhos com as pernas cansadas de tanto dançar com minhas mães. Eu penso: eu vi minha mãe mais velha que sequer ainda nasceu. Pensei na mãe que tenho hoje, tal como a tenho e percebo: ela não dançou comigo.

Em meu sonho, seria isso mesmo? É só o que ainda não me é possível? Quero dançar com a minha mãe mais velha. Adormeço novamente, para tirar tempo da vida e, ao mesmo tempo, para me encontrar de novo com ela.

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