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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

olhos em conserva

e se eu tivesse muito dinheiro
se eu fosse mais um novo
milionário
e se ainda assim
eu tivesse também
certa consciência
dos fatos

ainda assim
rico e consciente
será que este horror
ainda assim
me causaria espanto?

eu me pergunto
eu me exclamo
haveria a possibilidade
do mundo me tocar
de as coisas me olharem
sem que fosse
para anunciar sobre meu corpo
e vista
o seu desesperado
abandono?

se eu tivesse a arma
este milhão
ainda assim
eu iria querer alguma
justiça?

ia me doer a fome dos outros?
ia me escorrer esta
- ainda hoje -
lágrima-ira?
ia me comover
os negros
os desprotegidos
ia me mover a miséria
as mãos sem onde pousar
os peitos abertos
ia me tragar
tudo isso?

se eu pudesse esquecer
se pudesse cegar a vista
e endurecer os sentidos,
o mundo assim
me deixaria livre
apenas
a ver golfinhos?

a lucidez me afoga.
o meu choro escorre
e inda mais
limpa a vista,

o que vejo é sempre a quina
o que vejo é sempre o que não pode
é sempre a vida tornada
menor
a vida usada
a vida escrava
o que vejo é sempre o possível
estrangulado em gula
em luxúria
e aparthaid racista.

agora eu de novo choro.

LENTOS
os olhos se rodeiam de tristeza
e se vejo o mundo
como agora o vejo
tudo é de novo tão claro
que choro clareza
enquanto o corpo
imóvel

agoniza.

a família no resort
e eu tentando me preocupar
um pouco mais
com uma ou outra dívida.

eu tentando
me fazer humano
dentro dessa coisa toda
contra a qual
esperneio.

que vida é essa?

por que é que não sossega
o meu desassossego?

de novo
olhos em conserva
rodeados dessa lágrima
que nem jorra
nem resseca.

eu de novo
vendo a metáfora
destruindo o pedágio
que afasta etnias
eu vendo
simbólico
a possibilidade exterminada
da vida.

onde foi que eu perdi
o meu não saber?

onde foi que perdi a calma
do útero?
a calmaria da obediência,
onde foi

que deus ficou minúsculo

como foi, meu deus
que eu me permiti
resolver-me o mundo
sem mãe
que intercedesse
os dedos famintos?

não sei.

vago ignorante
por sobre redundâncias
de morte.

selo o beijo
com desfecho tirado
dos romances,
sei que me posso
mais feito rima
do que como instante.

este poema não tem fim.

a minha tristeza de mundo
não aumenta nem se reduz
apenas
em mim
se acolhe.

em mim
a ira do mundo de si
apartado
dorme morna
e sem passar fome
dorme segura
sem exceder ódios
sem fazer nascer
outras mais mortes.

dói leve.

a poesia.
ela me dói inteiro
mas amarga
feito chocolate dietético.

dói profunda
eu sinto, eu sei

mas me invade
e empurra ao embate.

como fazer
se a mim me destinei
balancear
os destinos?

como fazer
para achar equilíbrio
nas curvas
da interrogação,
no ápice
do cismo-
duvido?

minha noção de tempo reside segura
nas respostas que nunca vieram.

sei que não sabendo
duro ainda um pouco
aqui
aqui ao relento.

olhos em conserva,
incapazes do corte
incapazes do fogo
do chão
pisoteio
da terra,

eu duro
ciente da força
inconsciente que a
consciência
em mim faz procriar.

queria, hoje, talvez
ter sido amante das vírgulas,
queria hoje, quem sabe
ter acreditado primeiro

fosse um dia,
fosse por um recreio

eu fiquei triste muito rápido.

eu conheci o que não era
vendo no mundo
sua efêmera ilusão de ser
e estar em ordem.

em conserva,
meus olhos de mim conservo
para não quebrar a vista
no perigo destes tempos.

em conserva,
meus olhos de mim
escorregam,

mas ficam -
como eu, meus olhos permanecem

e seguem
dia após dia
sem temer o óbvio do tiro
sem temer o mamilo
o sexo
o inseguro

meus olhos continuam marejados
sobrevivendo ao árido mundo
eu queria, sim, eu queria
queria ter acreditado em felicidade.
queria ter conhecido tios e primos.
por um dia que fosse,
ou como hoje,
por uma tarde.
eu queria não ter me sido.

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