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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Crocodilo - Um conto de Diogo Liberano

Crocodilo
Por Diogo Liberano

Você já sabe o nome deste conto. Mas não custar repetir: este conto tem por nome Crocodilo. Ciente do nome, agora você pode, inclusive, esboçar – em mente – certa obtusa abertura da mandíbula recheada de afiados dentes. Caso saiba um pouco mais sobre répteis, você poderá completar tal imagem com um peso aproximado de uma tonelada e meia que a bocada deste animal despeja sobre o seu braço, perna, cabeça ou peito. Quando eu digo “seu”, caro leitor, cara leitora, não é propriamente o “seu” braço, ou perna, ou cabeça, quiçá seu peito. Você apenas lê esse conto. Eles não. Eles estão dentro da situação. E, infelizmente, não sabem de nada.

É noite. Início de madrugada. São seis escritores, seis dramaturgos (esta profissão tão na moda e ainda tão desconhecida). Seis dramaturgos, dos quais cinco são homens e uma é mulher. São eles: André, Diogo, Diones, Gustavo, Lígia e Vinícius. É curioso. Eles não perceberam ainda. Mas eles caminham, às duas e quarenta da madrugada de um domingo qualquer, eles caminham pela Rua Aristóteles Caldeira. Caminham como se fosse meio-dia. Mas já é noite, madrugada e vejam: são seis dramaturgos caminhando numa rua chamada Aristóteles.

Dramaturgia é um mistério. Ser dramaturgo é estar no meio do caminho, perdido entre a realidade do mundo e a realidade da obra. Escrever para o teatro, escrever peças de teatro, é de uma responsabilidade imensa, afinal, que mundo se escreve, que mundo é projetado, quando se escreve uma peça de teatro? Esses seis dramaturgos, que ainda caminham em plena madrugada, estão se perguntando tudo isso no caminho de volta a sua casa. Com o agravante, é claro, de já terem bebido muita cerveja e jogado muita conversa fora. Estão cansados. E quando o corpo do alvo descansa é que o Crocodilo avança.

Caríssimos leitores, eu não posso continuar com esta escrita. Apesar de já saber o que acontecerá com esses seis personagens, eu preciso me atentar para cada palavra que escrevi e também para aquelas que ainda pretendo escrever. Eu me pergunto: ficou evidente o que é essa coisa de dramaturgia? Ficou evidente a provável ironia de seis dramaturgos caminharem numa rua chamada Aristóteles? Eu sei que vocês não me responderão, mas se eu estou duvidando, talvez vocês também possam duvidar comigo.

Nosso querido Aristóteles foi um filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Isso todo mundo sabe, correto? Consta no Wikipédia (foi inclusive de lá que eu tirei essas certezas). Mas o que importa em relação a Aristóteles – aqui para este conto – é o fato de que esse cara foi responsável por fazer do teatro o que ele ainda é hoje. Em sua obra “Arte Poética”, ele apresenta um tratado – não sobre Crocodilos – mas um tratado que examina o fenômeno da criação poética, definindo a poética como uma imitação oferecida a um público e capaz de lhe provocar tanto o prazer como o conhecimento. Bonito, não?

Assim como um homem frente a uma peça de teatro, agora, neste instante, vocês leitores se colocam frente a esta obra que eu estou escrevendo e, o autor aqui pretende, que por meio desse encontro vocês possam ter prazer, mas, sobretudo, conhecer um pouco mais sobre o que o ser humano foi capaz de se tornar.

É engraçado. É por aí que os seis dramaturgos pensam. São a partir dessas problemáticas que eles tramam suas conversas e projetos e desejos e revoluções. Eles acreditam que o mundo nunca esteve tão carente, tão necessitado de poesia. Eles acreditam que as pessoas estão sendo, cada vez mais, expropriadas do seu poder simbólico. Ou seja: o que você vê quando vê uma migalha de pão sobre a mesa? Uns diriam: uma migalha de pão, ora! Outros talvez dissessem: por que você está perguntando isso? Outros poucos, bem poucos, talvez pudessem nos dizer: eu vejo uma estrela.

É esse o conhecimento de que Aristóteles fala. Uma obra posta num palco, ou num livro, ao se confrontar com aquele que lê, tem o poder de lhe abrir muito mais do que guardam suas palavras, gestos e movimentos. Uma obra é um projeto de mundo, não apenas um retrato imóvel da nossa realidade bruta e intempestiva.

Palavra bonita esta, não? Intempestiva. Intempestivo é aquilo importuno, inesperado. Isso me leva de volta aos seis dramaturgos andando pela Rua Aristóteles. Ainda é madrugada, eles acabaram de entrar nesta rua. A noite é amena, não faz frio nem muito calor. Não me lembro, mas creio que existiam estrelas no céu ou, ao menos, migalhas de pão pelo chão da rua. Eles poderiam caminhar até a próxima quadra e um deles, Vinícius, pegaria a chave, abriria o portão, todos entrariam no corredor do prédio e em menos de um minuto estariam dentro de casa, rindo e conversando novamente.

Mas não. Eles não vão aportar em casa por agora. Porque – e isso eles não sabem – esse conto se chama Crocodilo. E não outra coisa. Lembram-se? Crocodilo: o maior réptil na face da terra, o animal que, depois das aves, é o parente mais próximo dos dinossauros. Crocodilo: réptil que engole suas presas em pedaços, às vezes engolindo membros inteiros. Réptil que possuiu uma digestão extremamente eficaz e rápida, por possuir uma artéria a mais no coração, capaz de irrigar mais sangue no aparelho digestivo e, assim, capaz de produzir muito mais suco gástrico para triturar o corpo desses dramaturgos.

Fato é que eu não quero enganar vocês, caros leitores. Acalmem-se. O terror dessa história não é sobre um grupo de seres humanos sendo comidos por um Crocodilo em plena rua de uma cidade. Isso não vai acontecer. O que vai acontecer é o seguinte: logo assim que os dramaturgos entrarem na Rua Aristóteles, quatro rapazes sobre quatro bicicletas vão surgir inesperadamente – intempestivamente – e vão assaltá-los. As bicicletas vão ao chão. Os assaltantes vão render os dramaturgos e agredi-los violentamente. Uns tentarão correr para pedir ajuda e serão interceptados com mais chutes e muitos socos no rosto. Lígia, a única mulher no grupo, mesmo estando com as pernas expostas por conta do lindo vestido que está usando, não será violentada. Ainda bem. Só os homens vão apanhar. Mas ainda não aconteceu. Um pouco mais de tempo. Estão dobrando a esquina ainda. As estrelas ainda estão no céu. Eles acabaram de entrar na Rua Aristóteles. Quase lá. Mais alguns passos. Um pouco mais, caros dramaturgos. Pronto. Agora vai acontecer.

Pensem numa música, leitores. Uma sinfonia em que cada nota é um soco de som oco. É essa música que tocará até o fim das próximas linhas.

Vivemos todos dentro de um Crocodilo imenso chamado mundo. Crocodilo ágil que quando nos abocanha, apenas nos permite morrer em câmara lenta, vendo o próprio corpo se desmanchar enquanto se conta os socos na cabeça e o estilhaçar de vidros sobre a pele já arruinada. Quando dentro da mordida de um Crocodilo, ao homem-presa, resta apenas o silêncio e a indagação: como o homem fez o mundo se tornar apenas isso? Dentro do ventre do Crocodilo tudo aquilo que se deseja é voltar para casa e voltar a acreditar que a selvageria do mundo é tão somente um mergulho qualquer em qualquer piscina azul, com boias coloridas, dentro da qual um punhado de amigos batem braços juntos. Mundo sem Crocodilos, sem trocadilhos, sem armadilhas. Mundo simples que rima apenas com abraço, moletom, poesia. Dentro de seu estomaga-caverna, o metabolismo do Crocodilo cataboliza hormônios e enzimas que transformam em pasta cinzenta e homogênea tudo o quanto é tipo de pele, de carne, sangue, músculo e grito. Metabolismo que transforma em fim punhados de últimos instantes (que não vieram), punhados de beijos (que não puderam ser dados), enfim, beijos que foram para o sempre do nunca postergados. E o que resta, ao homem ali aprisionado, é apenas o tempo da mordida, contado a dentes finos, frios e enfileirados. Dentes que devoram iPhone, moeda, tênis calça camisa e todos os sorrisos que um dia já existiram. Não há espaço, dento desse estômago em que moramos, para erguer escadas e construir janelas. Não se pode sair para respirar. Pode-se apenas – e mais uma vez - olhar resignado para aquilo que fizemos do mundo e, nisso, perceber como a digestão desse Crocodilo é lenta e vai matando, pouco a pouco, o ser humano disposto em filas. E então começa a contagem das ruínas e de todas as fragilidades. O braço perfurado, o desejo (de poder acreditar que o mundo é outra coisa menos destrutiva) assassinado, os óculos no rosto quebrados a soco, o brinco da orelha arrancado, a cabeça batida contra as grades do prédio residencial (sem que ninguém pudesse os socorrer daquele assalto). Dentro desse estômago-mundo, dentro desse Crocodilo, a luz é escura e o tempo é curto, nem sequer é suficiente para que o homem possa se olhar com calma. Resta, então, apenas o cheiro. O mais perto do amor que esses seis dramaturgos – que neste exato instante estão tomando socos e mais socos – o mais perto de amor, que um pode ao outro chegar, vem pelo cheiro. O cheiro da tangerina compartilhada a cada manhã. O cheiro do café com pão queijo tomate e poesia. Para estes seis personagens, capturados logo após dobrarem uma esquina, o que resta agora são os olhos apartados do rosto, são braços sem peito para abraçar, dedos sem unhas para pintar, sorrisos sem boca para beijar. Que mundo é esse que nos devora e que mesmo assim nós alimentamos todos os dias? Um deles se pergunta enquanto a cabeça ecoa mais um soco dado à mão fechada. Que mundo é esse que reclamamos ser o que é, mas diante o qual não nos movemos para modificar? Diz outro dramaturgo, para si, em silêncio, não querendo aceitar que não possa haver saída alguma. Vendo-os agora, numa eternidade que provavelmente tenha durado apenas um ou dois minutos, o meu peito dói mordido entre a ira de sentir pena deles e a pena de sentir ira do mundo (que eu mesmo destruo sempre que me permito não me importar). O plural de socos nas suas cabeças ainda vibra aqui, junto aos meus dedos pinçando letras no teclado. Os socos arranjando fúnebre sinfonia, preenchendo todo e qualquer espaço vago, preenchendo as pausas existentes entre cada uma das vírgulas. E junto ao som do soco, um imperativo incessante a se repetir: desistam dessa ideia torta de fazer poesia! Desistam de querer resolver o que não tem mais saída! Estamos dentro do Crocodilo agora. Alguns braços mordidos – e já quase completamente desmanchados pelo ácido clorídrico do estômago desse imenso mundo – se abrem, precariamente, e suplicam por paz. Os braços soltos imploram por alguns minutos, que seja. Pedem os braços por uma nova cena, pequena e miúda, outro projeto de mundo no qual todos os homens estejam dormindo ao mesmo tempo, para que ninguém tenha tempo nem condição de alimentar o Crocodilo. Uma cena curta para deixar que reste ainda alguma sensação de vida a ser vivida. Acontece, porém, que o Crocodilo ouve a conspiração de suas entranhas. O Crocodilo ouve os pedaços que ele acabou de abocanhar. Ele ouve cada braço, perna, cabeça e peito lhe tramando um motim. O Crocodilo sabe que alguns seres no mundo, alguns poucos seres, bem poucos, querem dançar a tristeza daquilo que nos tornamos. O Crocodilo ouve até mesmo eu trancado dentro de casa escrevendo essas palavras. Ora, eu estou dentro dele. E você também está. Mas é que, daqui de dentro desse órgão-baço-poema-desnecessário, o Crocodilo pensa não haver força capaz de fomentar algum vômito diarreia ou intriga capaz de destruí-lo. Mesmo assim ele quer saber, por curiosidade, por que o homem ainda deseja tanta alforria. Eu poderia morrer agora, caros leitores, caso já não estivesse morto. Eu sou um desses personagens. E aqui, sobre o meu corpo, tanto os socos quanto essas linhas se inscrevem. Pois se o Crocodilo me ouve conspirar contra a sua opressão, pois se isto é já um fato, que então assim seja: deitado em maca hospitalar, vestido de gaze, perfumado a éter, que eu convoque essas palavras e projete outro mundo no qual me pareça mais possível estar. E então, meu braço amputado coagulará com a força da sua tristeza. Meu sorriso atravessado se preencherá com a tenacidade do seu desconforto. Minha boca seca desabrochará com o sangue da sua fala que cessou. E então, caros amigos, eu posso me erguer, ainda que trôpego. Eu posso voltar a gritar, ainda que rouco. Eu posso amanhecer, cruzar a sala, ligar a vitrola e – mesmo dentro desse estômago-escroto – eu lhes posso convidar: dancem comigo esse réquiem?

E então eles limparam o sangue em cada rosto e conseguiram chegar a sua casa. Agora, quando eu os olho, sei que estão parados. Olham-se enquanto o gelo age na cabeça inchada. Miram-se mudos, enquanto a toalha branca suga o sangue caudaloso de tantos cortes.


Que não tenha havido prazer neste conto, é verdade. Pois que, ao menos, se perceba através dele que as vítimas naquela rua, naquela madrugada, eram tanto os assaltantes como os assaltados. Eram, ambos, homens tentando sair desse estômago-mundo-injusto que só nos faz comer e matar o outro (e nisso, também a nós mesmos).

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