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domingo, 11 de agosto de 2013

Nem mesmo um cochilo.

Cheguei ao teatro atrasado. Tinha que ter chegado uma hora e meia antes para ensaio, mas não consegui. Porque antes, noutro compromisso de trabalho, gastei mais horas do que deveria falando de ti.
Daí peguei um ônibus rumo ao teatro. Mas antes do ônibus, gastei tempo me afagando dentro de casa ao som de um cigarro. Olhando pela janela, pensei em você e me percebi tão preso, tão junto, tão costurado. Apaguei o cigarro, liguei o chuveiro e me veio - repentino - o seu cheiro.
Daí me ensaboei, me lavei todos os cabelos e pensei: meu deus, quando será o próximo beijo?
Saí do banho, me enxuguei na toalha usada por você. Já faz dias, já era para ter lavado, mas conservo ela ali, pendurada, por vezes coloco-a ao sol, mas não lavo. Não lavo. Deixo ela ali te guardando em seu íntimo, para os dias de demasiada carência.
Carência pode soar pegajoso.
Guardo a toalha suja de você para os dias de amor escancarado.
Saio de casa, fumando um cigarro. Me faz bem ver a neblina e nela buscar seus traços - fugidios traços. Busco na neblina o seu rosto e me surpreendo: eu o sei decorado.
Cruzo a pista pedindo para ser atropelado, mas meu amor me salva. E bate um carro no poste, matando mãe filho e cachorro. Eu, eu sigo, sobrevivendo ao tempo. Nada pode me matar, exceto este amor.
Que azar. Chego ao ponto de ônibus e vejo que um carro havia acabado de sair. O que faço? Sento-me num banco de cimento e acendo o celular: é que no fundo dele, sobrevive o seu rosto risonho e o meu coração escorrendo pelos meus olhos, parceiros, ao seu lado.
Vês?
Está difícil me dar espaço. Tudo em mim - e no mundo - te convida a estar.
Entro no segundo ônibus e uma música bem específica começa a tocar. Qual era? Não lembro. Lembro apenas de me sentar na janela tingida a sol e de fechar os olhos, para bem te imaginar.
O carro arranca. O vento me assopra. Sinto-me beijado (não pelo mundo, nem por deus). Sinto-me acariciado pela sua mão como fora da outra vez.
Durmo. Durmo enquanto o ônibus me chacoalha. Durmo e dormir nunca foi tão bom. Porque é dormindo que eu posso te encontrar sem segredos, sem impedimentos, sem relógio com ponteiros coloridos.
Durmo preciso e profundo: quanto mais fundo eu for mais perto eu chego do seu abrigo (seus braços, imensos, me cobrindo).
Daí acordo atrasado para o mundo. O mundo me olha, olham-me também os mendigos, e eu sobrevivo. Cruzo a rua em meio a miséria e nada é mais pobre do que o meu corpo te pedindo, te solicitando, te querendo num nível que o mendigo da fome me pergunta: quer ajuda?
Não. Não quero, obrigado. Cruzo a rua e me abro em sorriso. Eu estou na cara. Não posso nem sequer enganar quem passa. Não posso me enganar. Isso que eu estou vivendo é maior que a carne, maior que o corpo, é imenso no nível profundo de uma cova (doce) e rasa.
Chego ao teatro, mas quero ficar do lado de fora. É que lá dentro o sinal do celular não pega e me parece suicídio correr o risco de não estar online no momento que me chegar um seu beijo. Um desenho, uma linha, uma coisa que confirme aquilo que neste exato instante me avassala.
Amo.
Daí entro, cedo, entro no teatro e vejo os refletores, desço escadas, vou ao camarim, tomo um café, mas minha sede não morre. Olho-me no espelho e me acho feio. Mas sei que tudo é porque você não está lá: para dar sentido a minha humanidade.
Seus olhos me descortinaram, daí, pude aguentar o mundo com esta cara judiada.
Decido o improvável. Faltam cinquenta minutos para o espetáculo começar. Eu estou em cena, eu preciso me organizar. Daí, escolho o inverso. Escolho me guardar. Deito no chão da platéia, sobre o carpete no qual pés de públicos pisaram.
Deito-me no chão e me cubro com a poltrona dobrável. Escondo-me como num ninho: não quero ser incomodado. É que antes do cochilo, mais uma vez - repetida - acendo o celular e vejo o seu sorriso. Olho fundo nele. Acho-te a coisa mais linda. Olho e fecho os olhos, bruscamente: para te gravar na retina da alma.
Quero sonhar. Quero dançar com você. Mas se não é possível assim tão literalmente, faço o quê? Fecho os olhos e tasco um fone de ouvido para me livrar da correria do mundo. Durmo, sobre o chão do teatro, escondido entre poltronas, coloco um despertador para me acordar 15 minutos antes do público entrar.
Durmo e te sonho. Te encontro. Te mexo. Você me responde.
E é isso: a resposta é só o que importa.
Se eu te amasse tanto assim e não tivesse o seu sorriso aumentado, eu nem sei, eu não seria nada.
Daí alguém me acorda e eu me irrito. É que no exato instante em que fui acordado eu estava lá contigo. Lá onde? Não sei. Mas estava. Dançando, provavelmente.
Levanto-me. O despertador tocou e eu não acordei. As pessoas me dizendo está na hora, o público vai entrar. Eu entro correndo no camarim, tiro a roupa, me vejo quase nu e me revelo: para que essa nudez se ninguém a pode usar? Usa-me figurino. Cobertura de pano para apaziguar o rompante desta alma.
Intranquilo. Olho-me fundo no espelho e te encontro dentro de mim protegido.
Daí apago a luz do camarim, desejo sorte aos atores e me finco no cenário. Decido, pela primeira vez depois de várias apresentações, fechar os olhos. É que enquanto o público entra, eu fico contigo, em ti abraçado.
Ouço a trilha, é hora de abrir os olhos. Abro. E então, da minha boca nasce alguma poesia.
Falo, miro o olho de quem me olha. Vou fundo. Eu não tenho escolha. A vida me chama.
Vou mesmo, sem comiseração. Parece que corro um pouco mais que o normal. E somente no terceiro ato, eu descubro, é por conta de uma fala que possa ser a ti destinada.
Falo do amor com conhecimento de causa.
O público me olha. Não era cena. Isso que fiz hoje foi relato sincero e explícito. Deveriam me censurar. Eu sorrindo de dentro para fora e dizendo com a boca nervosa: o amor sobressaltava em mim.
Engano o público.
O amor não me sobressaltava.
O amor me sobressalta, posto seja o amor, você.
Acabou a peça? Não sei dizer. Independo do tempo, pois a batida que me determina neste momento é te ver, falar de ti, te rememorar e beijar e cuidar e te querer.
Meloso, não?
Situação delicada.
Alguns olhos me percorrem pelas ruas. Alguns convites tão evidentes que só me posso pensar: faz algum tempo isso talvez me chamasse atenção, mas agora, camarada, agora não.
Virei padre, ilícito, só faço comunhão contigo. Abrigo.
Sei lá, carinha. Hoje o dia foi você o tempo inteiro. Se estou vivo, é só porque quero rir na cara do mundo quando tiver você premido entre meus dedos.
Sou todo pretexto.
Vivo apenas para o que ainda não veio (mas já está aqui comigo). Já está contigo, eu sei.
Penso - confesso - eventualmente, que se isso se perder, eu me vou junto, vou-me liquefazer. Vou virar torrente e me suspender em correntes sem fim, para perto de deus, para dizer a ele - cara a cara - o que você quer de mim?
Tenho tanto amor que acho até ter engordado. Minha mãe está feliz.
E eu?
Eu estou bobo. Absurdamente idiotizado. Nada melhor para guardar o amor do que ser invólucro pobre batido e desnecessário. Sou eu - hoje - figurinha repetida. Pode me olhar, moço. Pode me olhar que eu sei que dentro de mim eu guardo aquilo que você nem imagina.
Dentro de mim, eu carrego uma promessa de mundo.
Sono?
Não, apenas poesia. Concreta. Avassaladora. Deliciosa.
Um dia desses eu me caso com você, diz a música agora.
É melhor eu parar.
É melhor.
...

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