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quarta-feira, 5 de maio de 2010

LÁ, NA DISTÂNCIA.

Num dia em que festejaram mais um ano dos meus anos,
Eu fui feliz e ninguém caiu morto,
exceto a vó bicentenária.

Na casa antiga e hoje alugada,
a alegria de todos, tentando incluir a minha, era correta
todos tinham uma religião qualquer para amenizar suas falhas.

Naquele tempo eu tinha a virtude de não descrever coisa alguma,
Virtude de ficar só e de não fazer pouco caso do silêncio da poeira
dos livros presos em prateleiras,
Eu brincava de ser as esperanças que todos tinham por mim.
Foi quando vim a ter esperanças – hoje – que as perdi,
Quando vim a olhar para a vida – ontem e hoje – tudo já perdera o sentido.

Sim, o que sou foi proposto por mim-mesmo,
Mas fui o tempo todo sendo coração e parentesco
Fui das missas sem sentido da catequese dos batismos
Fui por acharem graça de todo e qualquer gemido meu
O que fui – sem Deus! – o que hoje só eu sei que foi…
Está lá, na distância!…

(Escrevo…)

Sobre o tempo em que festejavam mais dias e mais anos
Sobre o madeira escorregadia da escada
Sobre os silêncios gritados da casa,
O que hoje eu sou (e sou hoje já sem nada disso,
que pena),
O que eu sou hoje é terem alugado a casa,
vendido a fazenda,
enterrado os familiares
sem restar quadro
sem restar foto
sem nada restar

Por estarem morrendo todos, aos poucos
Mas estar eu sobrevivente a mim-mesmo com um fósforo esguio
Esperando o tempo de comemorar o último dia de meus anos…

Que hoje só sei amar porque faz falta!
Desejo tátil de tocar pela força a alma e se encontrar ali de novo outra vez,
(faz tanto tempo)
Pisar na terra sob a qual pelos jogos enterrei tanto inseto
Por uma viagem que não compreendo
poder voltar com fome insaciável
gosto de arroz e feijão que se come apenas em casa.

Hoje tudo com nitidez de mim se extravaza
E vejo este presente tão propositado no qual tudo se traduz em verbo falta…
A mesa posta para os amigos, que hoje não vieram
Os jogos espalhados pela casa, hoje todos sem carta peão e dados
Os copos, mesas, cadeiras
todos hoje já vendidos ou quebrados
As tias que já não vejo, os primos que já morreram,
meu deus,

terá sido tudo isso esboço para me dar uma vaga noção de existência?

Naquele tempo…
Faz bem não pensar tanto.
Começo a clamar a Deus, a deus, adeus
porque hoje já não faço anos
apenas duro,
conservo.

E nisso sobre mim há mais dias
E nisso deita em mim minha pele
E o tempo nos acaricia.

Raiva às vezes de ter compreendido certas coisas de lá para cá…
Queria ter sido burro. Para ver hoje este silêncio
e nele não conseguir ler falta…

Ter sido burro para ver o silêncio e nele ficar duro
como quem não sabe nada. Mesmo. Até a morte.

______
FONTE:
ANIVERSÁRIO, de Fernando Pessoa.

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