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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

De falar a mesma coisa

Você quer falar do quê? Perguntou o professor.

A criança sentada não sabia o que responder. Tentava dentro dela mesma se dizer "não é preciso falar sobre nada, não é preciso ele não vai perceber". E do lado de fora o professor insistia, com uma veemência acadêmica "Do que você vai falar? E mais, vai falar por qual motivo?". E ela, a criança, sentada, sentia-se mesmo sentada sobre um abismo. Um poço da incompreensão. "Diga!" ele disse gritando gentilmente. "Diga, agora é a sua vez, todos nós já fomos bastante pacientes, não fomos?". E a criança olhou a turma que devolveu à ela o seu olhar de prostração. Como podia todo mundo estar parado esperando de mim alguma conclusão?

Olha, gente, eu não sei nada. Eu queria descobrir, mas quando você me disse que era para pensar de dentro para fora, foi nesse exato momento que eu me perdi. Eu me perdi porque tudo aqui dentro tem mais peso, mais sabor, dá mais volteios. Tudo aqui dentro de mim é maior e se é menor eu me perco mais rápido porque percebo logo que eu mesmo não me basto a mim. É confuso, eu sei. É confuso sim. E a turma estática. Ninguém dizia nada. O professor começou a andar de um lado para o outro da sala. "Não vai dizer nada?" falavam seus sapatos batendo no chão meio sujo de pó de giz. "Nada mesmo?" era a dúvida que não calava era a dúvida persistente, dúvida desesperada.

Nada, dentro da criança apenas nada conseguia se proliferar. Foi quando outra ergueu a mão e furou o momento. Outra criança do mesmo tamanho talvez com os mesmos tormentos ergueu a mão e cancelou o inevitável. Sim, disse o professor, alguém quer te perguntar alguma coisa e veja agora se é possível responder. Lembrando que não importa o certo ou o errado, importa antes o que você sente, o que sai de dentro de você. As crianças se olharam. A de pé, trêmula. A sentada, trêmula constante. No olhar algo se dizia a todo instante, elas dividiam a alma era explícita a comunhão dos seus semblantes.

A criança erguida falou "Eu também tive dificuldade quando o professor me perguntou. Mas agora vendo do lado de cá, eu me sinto melhor para falar sobre aquilo que no final das contas nem eu nem ninguém falou". Mas não está na sua vez, advertiu. Sim, professor. Não está, mas se ela se sentar aqui e eu lá, talvez daqui ela consiga nos falar. O professou fez uma cara que não sei descrever. As crianças gentilmente trocaram seus lugares e a turma respirou uma renovação incapaz de se prever. Sentaram-se, as duas, cada uma no lugar da outra. A criança erguida agora era alvo da turma, algumas outras pensaram "que criança louca!". A que estava sentada, sutilmente espremida pelo seu silêncio, agora movia-se mais facilmente sobre a carteira, em meio aos outros seres como ela.

Foi então que ela falou. Eu quero dizer, quer dizer, é que para mim isso que vem de dentro quase me atrapalhou. Não é porque não tem nada, tem. Mas é porque é difícil falar das coisas que a gente não sabe o nome. Como se faz, professor, quando a gente não sabe o nome do que tá sentindo? O professor respondeu gemendo seu costumaz sorriso. Ele também não sabia, pensou a criança recém-libertada. A outra sentada na mesa do professor era como se estivesse congelada. Incapaz de suar, incapaz de sair do foco, de sociabilizar. Então eu pensei que talvez fosse legal, fosse sincero, inventar um nome. Um nome a gente pode inventar, não pode? Para dizer sobre as coisas que não tem nome ainda? Não pode?

Foi quando o professor descobriu que faltara numa das aulas anteriores explicar o verbo amar. As crianças ali perdidas queriam um nome para aquilo que as tirava do lugar sem tirar. Para aquilo que as oprimiam sem sequer apertar. Foi ao quadro e pediu que a criança em sua cadeira estatizada voltasse ao seu lugar. Escreveu em letras garrafais A - M - A - R. Alguém sabe o que é isso?

As crianças sorriram. Ninguém outra vez se permitiu falar. No sorriso porém foi visível tudo aquilo que eles temiam confesar. Vocês foram pegos pela cilada do amor!, esbravejou o professor. Professor, o que é cilada? E de imediato, outra logo em cima perguntou, o que é amor, professor? Ele então disse vocês não se lembram daquela palavra que estudamos na aula anterior? Aquela que classifica as palavras que se parecem, mas que são diferentes?

Simônimo? Alguma criança gritou!

Sinônimo, corrigiu o professor. Sim, assim como é cilada, assim como é amor. São palavras que dizem o mesmo mas pintadas de outra cor. São diferentes maneiras de falar a mesma coisa. Escrevam em seus cadernos, por favor. Ele começou a transcrever no quadro o que era o sinônimo, usando cilada e amor como exemplo. As crianças de imediato abaixaram as cabeças, mas no meio delas uma cabeça de pé se destacou. Assustada, a criança que a aula em silêncio começou, agora em silêncio se aprisionava, tentando aceitar que a cilada dentro dela talvez não fosse só cilada, talvez pudesse ser amor.

O sino do intervalo tocou. Próxima aula, vamos estudar os antônimos, disse o professor. E saiu, deixando as crianças perdidas no silêncio que a sua descoberta provocou.
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Um comentário:

Vanessa Gomes disse...

O texto mais lindo...maravilhoso
ai, simples
aprendizado
vc conseguiu extrair
a beleza do sentimento genuíno
de uma criança.
ai, pq nos esquecemos desses momentos em nossas vidas
qdo começamos a jogar com td?
td é tão bonito qdo puro
adoreiiiiii
me deu saudade do tempo em q eu acreditava
q trocar de lugar bastava.
amei!!!

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