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segunda-feira, 4 de maio de 2009

clamada, excessivamente clamada

Não é bem que o trabalho a fizesse mal. O problema não era esse. Nunca foi. Se quisesse poderia servir porção de aipim frito na praia de todo o dia. Mas não. Quis ser garçonete. Sentiu que era seu destino. Servir ao outro.

Mas, que outro? Era o que sempre se perguntava cada vez que sentia uma nova mão furando o ar e sinalizando sua presença. Costumava demorar uns segundos até voltar o corpo ao ser que clamava por ela. Sentia-se clamada, é verdade. Não era obrigação. Os seres ali na cafeteria não a chamavam por chamar. Era tudo necessidade.

Naquele dia, porém, estava vertiginosa. Sabe aquela sensação da perna indo adiante, atropelando o pensamento? Era ela, neste dia que estou dizendo. A primeira mão que clamou por ela não foi nada sutil. Pensou, sou muito clamada, então. Aproximou-se da velha senhora esfumaçada.

Um café, senhora?
Uma torrada.
Não servimos torradas.
Pode ser a que tiver na cozinha.
Perdão, senhora. na cozinha não há torradas.
E vocês comem o quê?
Comemos... Senhora, gostaria de uma trufa?
Eu sou diabética.
Temos trufas dietéticas. Um sonho, a senhora deseja?
Desejo. O que é que eu não desejo.
Trago num instante.
Pode demorar, minha filha.

Saiu ligeiramente excitada. A velha ali sentada esperando não poderia supor nada. Inclusive, durante a conversa com a garçonete, vez ou outra, mirava outra coisa que não ela. Provavelmente, concluiu, já não enxergava muito bem. Era diabética, coitada.

No balcão da cozinha, sobre as migalhas de um pão qualquer, posicionou um pequeno pires branco. Louça branca. Adorava. Abriu um pote tampado em alumínio. Retirou com a mão mesmo uma trufa. O chocolate por fora segurando aquele íntimo. Doce. Um garfo. Um guardanapo. Voltou à velha.

Aqui está, senhora. A sua trufa.
É de chocolate?
Dietética.
Deixa eu provar isso.
É claro, aqui está.

A velha meio trêmula apanhou com as mãos sujas de rua a trufa e a lançou para dentro de sua boca. Meio babada, boca de velha já toda desgastada. Ela ali olhando permaneceu solicitada. Sem mover o olhar nem os pés travada no seu dever. Eu quero ver. Quero ver.

Mastigou. Mastigou. Ela esperou. Paciente. A velha movimentou os olhos de uma maneira diferente. Ela ali continuou olhando. Sem culpa. Sem abandono.

Gostou, senhora?
É doce.
Sim.

A velha entre pensar a afirmação da garçonete e assimilar o enjôo do corpo. A velha ali entre o nublar dos olhos e a velocidade do sangue dentro das veias provocando-lhe um transtorno. A garçonete se retirou, deixando apenas o guardanapo sobre a mesa.

Deixou o pires sobre a bancada da cozinha. Devolveu o garfo sequer usado para dentro do cesto. Atravessou a cozinha e abriu a porta que dava para o beco. Para o ar. Encostou-se na parede e olhou o céu. Era mais prédio do que céu, é verdade. Ali naquele beco, ela respirava o poder do seu amor. O incrível poder que sentia - detinha em si - doando-se assim a qualquer um que ali a chamasse.

Voltou. A mesa vazia. Do outro lado, porém, um homem de mãos grossas sinalizava a sua atenção. Foi até ele. Sentindo-se clamada. Parou. Ouviu o barulho brusco da porta sendo empurrada. Eram as duas meninas que de novo ali voltavam. As duas outra vez e aquele homem ali. Parado. Diante dela, necessitado.

Sentiu-se clamada, excessivamente clamada. Como nunca havia sido antes.
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