Pesquisa

sábado, 29 de novembro de 2008

A disposição dos móveis

Não me assusta a disposição dos móveis, nem sequer as luzes apagadas.


Assusta-me primeiro a pele seca e a persistência dessa vaga, em aberto, no meu corpo, no meu peito. Variados os modos tentados, variados os gracejos lançados. Mas para quem, eu me pergunto. E eu sempre me pergunto o que não posso responder. Sempre me lanço nos espaços que não posso compreender. Ou porque são fundos demais. Ou porque nunca há neles um você, que seja, qualquer você, um desses que me estenda as mãos e tende a me fazer compreender o porquê das luzes apagadas o porquê dos móveis tão colados sem espaço entre eles sequer para um transitar das pernas.


Mais uma vez eu chego em casa. Nem é noite nem já é dia. Eu chego em casa na hora da agonia, quando o corpo ainda não chegou ao limite, quando o corpo ainda persiste, louco, querendo amar. As luzes apagadas, os ruídos são de fora. São de fora de casa. O silêncio aqui dentro persiste e eu preciso perfurá-lo. Dizendo sem sentidos e ousando ferir o ar com um soluço ou um espirro. Mais uma vez eu chego aqui. E não sei como em seguida caminhar. Não sei o que fazer depois que entro no quarto e despejo sobre a cama o que sobrou além de mim. A mochila, a garrafa de água, a carteira, o celular. Tudo no silencioso. Tudo sem vida. Tudo assim em abandono.


O que me recebe enfim é essa tentativa de se dizer de se gritar de se contorcer entre palavras e nem sempre em versos. Nem sempre eu verso sobre o que em mim agoniza. Eu estou neste momento fugindo das rimas. Fugindo até nelas não me ver e não me vendo também por isso me esquecer e ir seguindo. Ir seguindo. Até que uma dor profunda me faça querer tombar. Até que uma dor profunda me consuma e me destrua, por fim. Se não houvesse o sono talvez eu morresse jovem demais, louco demais. No sono eu me refaço e sempre recomeço os dias do ponto em que quase parti. Recomeço os dias do ponto em que comecei a ruir. Mas muitos cacos por vezes juntam-se em mim, sem que eu veja nem autorize nem perceba, sobre a mesa, os cacos vão se juntando e eu me sirvo na louça rachada eu me sirvo na droga acumulada. E a cada dia, recomeço do ponto onde fora incapaz de quebrar.


Com os tempos é natural que fique um ranço, um acúmulo de dúvidas e de meandros que não dizem nada exceto o desespero. E amanheço em seguida e esse é um novo recomeço. Esse é um velho jeito de dizer que no amanhã tudo enfim será melhor. O que posso fazer. Espero uma dor incontrolável para nela ruir-me por completo morrendo do chão ao teto, do chão aos cabelos, ruir-me nessa dor e não mais ser paciente com o que me cansa, mais e mais, a cada dia, a cada rima.


Mais uma vez chego em casa. Um respiro de calor do couro colando os pêlos do corpo. Uma vontade desmedida de quebrar as promessas e fumar até o corpo por dentro ir queimando e por dentro jamais poder novamente se refazer. Se fosse assim, refazer o dia sem um corpo refeito. Talvez assim amanhecendo ligeiro fizesse o corpo pedir pela pausa que nunca se pode ter, nem estando ferido nem estando amando. Nunca se pode ter. E o corpo já ferido sinaliza o abandono que o iniciar de um novo dia teima em ofuscar.


Sol. Vem para queimar. Vem para secar e não mais deixar brotar que seja uma lágrima. Seque tudo e mate com calor. Mate sem amor e faça doer. Seja uma dor fudida e horrorosa. Dobre-me por sobre minha espinha e me faça pedir perdão por tudo o que não compreendo. Perdão por tudo e somente pelo que jamais entenderei os motivos. Queime sem piscar os cílios e reverbere-se em halos aumentando a dor da multidão. Transforme minhas janelas lacradas nos aquecedores da casa, torre tudo por dentro e me faça morrer no dia-a-dia da sala cozinha banheiro desespero.


Mais uma vez eu venho dentro de um ônibus que sacode e me bate em seu interior. Mais uma vez dentro do ônibus eu venho sarando alguma dor, deixando o vento da janela escorrer pelo nariz sem sangue sem vida seco, pois também em agonia. Agonias do dia comedidas. Todas disfarçadas com breves alegrias que atrapalham o caminho. Que reerguem coisas mortas e que já não servem. Mas seu túmulo no amanhecer é motivo para recomeçar e o corpo assim jamais descansa mesmo assim quando pede pelo parar. Pede pelo parar. Pede pêlos tocar. Pede pêlos. Pelo ar.


Faço listas. Do que fazer, do que comprar, lista com motivos para não morrer. Não morrer de rir, porque se chego em casa sorrindo tudo se esvai e a dor dos dentes rangendo distancia ainda mais e mais a dor que me apraz, a dor verdadeira, dos nervos roçando madeiras e metais e a lixa nas unhas são para a carne fora lançar. As lixas na unha são para espalhar a sujeira do dia pelo ar. Faço listas. Preciso viajar. Ir a praia que fica ao meu lado onde sou incapaz de tocar porque o terreno é arenoso e nele eu posso ficar posso nele criar raízes e um dia, quando a maré subir, lentamente, avançando a passos curtos de um idoso doente, um dia enfim eu posso me afogar. Eu fico aqui, persisto, não posso finalizar este corpo que cria alternativas para ainda não se ir.


Tudo então passa por esse caminho. Do meu finalizar. Tento diversificar pensar em outra coisa nem tudo a sério levar. Mas já não falo de seriedade, não falo de nada exceto esse nada em que minha vida se transformou. Todo o nada disfarçado e o que fazer com os entulhos que me dou o que fazer com os entulhos que me enchem a casa e espremem os móveis uns contra os outros. Eu já não posso andar. Não posso livremente caminhar dentro de casa. Tudo é pesado e difícil de se abandonar. Porque não posso ser leve e simplesmente me lançar não ao fundo do mar não ao alto de um altar, mas simplesmente partir sem riso e primeiro por dentro vir a me enforcar.


Bebo mais um gole de água e os interiores silenciam para ouvir o som que o corpo pode tocar. Para ouvir tudo dentro de mim dizendo o que eu sequer posso ouvir pois estou surdo e cego e tudo enfim não se parece como é. Tudo enfim se parece diferente do que me diz a pele, quando a olho sempre inerte, morrendo tão aos poucos e fazendo-me acreditar que está viva.


Mais uma vez chego em casa e me afogo em conotações. Em sentidos que não sinto e que são pura contestação do corpo, autônomo, mas preso fielmente à carcaça por mim fundida. Contestação do corpo sob viés da escrita que só eu leio porque a pele ainda está seca e aos tempos seca-se em mim também o desejo. E tudo é possível contornar, tudo é possível contentar com um doce um cigarro um sem juízo. Tudo é possível disfarçar quando não se chega realmente ao precipício. Eu preciso de ajuda. Eu preciso. Eu não sei. Não sei o que pode ser ajuda para quem já experimentou o nome certezas. Não sei se acreditaria em bondade depois do que vejo restar sobre a mesa da casa. Que sequer existe. Que sequer insiste sente-se, por favor, pois também não há cadeiras. E só há o chão. E só o chão. E só no chão. E só. Um chão. Feito pele seca com pêlos como sujeiras sem toque sem reboco sem golpe da sorte. Tudo no mesmo abandono.

...

Nenhum comentário:

Postar um comentário